quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A ‘IDA’ AO POVO


AS CAMPANHAS DE DINAMIZAÇÃO CULTURAL (1974-75)



Por
Cláudia Lobo
Revista Visão História 01-07-2010

Coisas boas em jornais

«ALDEIA DE MÓS, CASTRO DAIRE, MAIO DE 1975 - A Operação Beira-Alta seria a mais longa e mais completa de todas as Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA. Em Mós os militares procederiam à vacinação de bovinos com a ajuda de uma equipa de veterinários dirigida pelo tenente-coronel Ribeiro (ao centro) e pelo capitão-veterinário Sá Dantas.» 1975. Guy Le Querrec. Foto copiada da revista Visão História.


Quando, a 30 de maio de 1975, foi finalmente publicado o decreto-lei que criava o Serviço Cívico Estudantil, Fernando Negreira estava a acabar o 7º ano no Liceu Gil Vicente, em Lisboa. Queria entrar em Engenharia, mas os caminhos da Revolução levá-lo-iam à «universidade da vida»: quem quisesse ingressar na faculdade devia prestar voluntariamente, durante um curto período de tempo, aquilo a que hoje se chamaria serviço à comunidade.
A ideia do Serviço Cívico Estudantil germinara em outubro de 1974, mês em que o capitão Ramiro Correia e o diretor-geral de Cultura e Espetáculos apresentaram em conferência de imprensa as linhas de orientação das Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA, tuteladas pela Comissão Dinamizadora Central (CODICE) da 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas. O espírito que presidia às duas iniciativas — tal como o que norteou outros projetos, nomeadamente o SAAL — era semelhante. «Pretendia-se não só conhecer a ‘verdadeira vida do povo’, diagnosticando a sua situação, como também agir e contribuir para a sua ação na construção de uma nova sociedade que vencesse a questão da desigualdade social», escreve a socióloga e professora do ISCTE Luísa Tiago de Oliveira, na tese de doutoramento Estudantes e o Povo na Revolução — O Serviço Cívico Estudantil (Celta Editores). É sua a expressão ‘ida ao povo’.


«SERVIÇO CÍVICO - No Cachão, ensinando adultos a aprenderem a ler, em agosto.» 1975.
Foto Fernando Negreira copiada da revista Visão História.


SEDE DE APRENDER

Visão História
Cabia ao Ministério da Educação e Cultura a responsabilidade do Serviço Cívico, no qual se inscreveriam em 1975, na contabilidade de Luísa Tiago de Oliveira, 11 814 alunos. Os estudantes seriam colocados segundo a sua lista de preferências — e Fernando foi parar à sua segunda opção, a campanha de alfabetização. «A minha primeira escolha tinham sido as Brigadas Giacometti.»
Com um passe da CP fornecido pelo Serviço Cívico, parte para Trás-os-Montes. Durante agosto, dormindo no chão da sala da Junta de Freguesia, dá aulas a adultos na escola primária do Cachão, aldeia do concelho de Mirandela onde se situava um importante Complexo Agro-Industrial. Consigo estavam mais nove ‘professores’, chegados de Coimbra e do Porto, e um orientador, esse já universitário. Os filhos dos transmontanos a quem Fernando dava aulas haviam emigrado; restavam avós e netos. «As pessoas queriam muito aprender», recorda. «Dávamos aulas duas vezes por dia, ao final da tarde e ao princípio da noite — a partir das 10 horas faltava muitas vezes a luz.» 
Era troca por troca — letras por pão. «As pessoas traziam-nos tachos, e era dali que comíamos.» A fome de aprender era grande — Portugal tinha mais de 30% de analfabetos quando a Revolução chegou.


«MICHEL GIACOMETTI - O pai do Plano de Trabalho e Cultura, que funcionou nesse verão.» 1975.
Foto Arquivo A Capital copiada da revista Visão História.


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O SONHO DE TRÁS-OS-MONTES

Enquanto esteve em Trás-os-Montes, o nosso jovem futuro engenheiro que nunca chegaria a sê-lo não se cruzou com militares. Mas os homens das brigadas do MFA andavam por terras quentes: decorria a campanha Maio-Nordeste, sob o lema «Trabalhar com o Povo — Construir a Revolução»
«Trás-os-Montes, o país real, é uma ferida aberta no País», escrevia o jornalista Mário Contumélias no Diário de Notícias de 3 de junho. O repórter estava em Faílde, uma aldeia sem água canalizada, posto médico ou Casa do Povo. «Começamos a perder o entusiasmo e as ilusões: vai demorar ainda muito tempo antes que as coisas melhorem tanto quanto queremos e é necessário.»



«POVO MFA - João Abel Manta desenhou os autocolantes das campanhas de dinamização.»  Pintura (cartazes); “MFA-Povo-MFA” e “Sentinela do Povo”. Dinamização Cultural, Lisboa 1974. Foto de arte-factoheregesperversoes.blogspot.pt


Duas semanas mais tarde, as brigadas do MFA chegariam a Paio-Torto, concelho de Mirandela, onde na escola só não se tiritiva de frio graças ao calor dos animais, colocados no andar de baixo do edifício, a chamada «loja». Aulas com cheiro a bosta, casa de banho ao lado das manjedouras das vacas. A população elegera uma Comissão de Aldeia sob a orientação do MFA, que reunira já 130 contos para resolver o problema da escola.
«O povo não é facilmente mobilizado por ideologias, mas sim por objetivos concretos, mostrando as populações grande interesse e preocupação em ver alguns dos seus problemas resolvidos», lê-se num documento do MFA de balanço da Maio-Nordeste, citado em Camponeses, Cultura e Revolução, tese de doutoramento da antropóloga Sónia Vespeira de Almeida, sobre as Campanhas de Dinamização Cultural do MFA (Edições Colibri). 
«É verdadeiramente através da solução de problemas concretos que o MFA se transforma em imaginário social de libertação, no centro de um universo simbólico de luta contra a miséria e a injustiça», defende o sociólogo Boaventura Sousa Santos na comunicação Crise do Estado e a Aliança Povo/MFA em 1974-1975, escrita dez anos depois do 25 de Abril.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Visita a um agricultor. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Parada de Ester. Maio 1975. Guy Le Querrec.


ALIANÇA POVO-MFA

Nesta altura, as campanhas de Dinamização Cultural já tinham efetuado centenas de sessões de esclarecimento, ajudado a traçar estradas e a rasgar caminhos, levando eletricidade e água potável a aldeias, transportado médicos e veterinários a lugarejos escondidos. As brigadas centraram-se sobretudo no Minho, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa, segundo Sónia Vespeira de Almeida.
Para trás ficara uma primeira fase, terminada em março, centrada na ideia da revolução cultural e que agregou à volta dos militares centenas de artistas. Para citar apenas alguns exemplos: no teatro, a Cornucópia e a Comuna; nas Artes Plásticas, João Abel Manta e Vespeira ; na música, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Carlos Paredes; cinema, bailado e circo também estavam presentes.
O Documento Guia da Aliança Povo-MFA, de julho de 1975, conhecido como «Documento do Copcon», marca uma nova etapa no rumo do Verão Quente, institucionalizando «os órgãos do poder popular ancorados em organismos de base como as comissões de moradores, as comissões de trabalhadores, os conselhos de aldeia». A segunda diretiva do CODICE, que estipula a colaboração com o Copcon, é clara: um dos objetivos fundamentais passa a ser «incrementar a reunião de Assembleias Populares». Daí a Comissão de Aldeia em Paio-Torto.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Vacinação de suínos. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Parada de Ester. Maio 1975. Guy Le Querrec.


ESPÓLIO DO VERÃO QUENTE

Constantim, Cicouro e S. Martinho da Angueira, concelho de Miranda do Douro, talvez não tivessem comissões de aldeia — mas a Revolução também lá se fez sentir. Pelas três passou Luísa Tiago de Oliveira cumprindo o Serviço Cívico, com uma das brigadas de Giacometti, as tais onde Fernando Negreira não foi colocado.
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O nome correto destes grupos era, na verdade, brigadas do Plano de Trabalho e Cultura. Mas ficariam conhecidas pelo nome do homem da ideia, 
Michel Giacometti, etnólogo corso apaixonado pelo nosso folclore que percorrera Portugal durante os 17 anos anteriores. Integrado no Serviço Cívico, e com o apoio do INATEL e da Gulbenkian, o Plano de Trabalho e Cultura foi organizado em três meses. Antes de partirem para o terreno, os 124 jovens escolhidos frequentaram um curso de formação em áreas tão diferentes como higiene pública, cooperativismo ou literatura popular. Gravador e máquina fotográfica viajavam na bagagem das 32 equipas que em julho, agosto e setembro percorreram os caminhos traçados por Giacometti. 
A herança desse Verão Quente é impressionante: recolha de 1 200 instrumentos de trabalho agrícola, registo sonoro de 3 mil trechos de literatura oral (contos, lendas, provérbios, rezas, etc.), compilação de fórmulas medicinais populares. 
Luísa Tiago de Oliveira viria a fazer do Serviço Cívico Estudantil o tema do seu doutoramento em Sociologia. Quanto a Fernando Negreira, que se tornou fotógrafo, decidiu nesse verão partir para outra aldeia, Arcozelo, com uma equipa de filmagens que rodava uma película sobre as campanhas de alfabetização. A liberdade estava mesmo a passar por ali.

Cláudia Lobo, Revista Visão História 01-07-2010


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Vacinação de animais. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Vila de Laboncinho. Maio 1975. Guy Le Querrec.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Vacinação de Animais. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Mós e Termas do Carvalhal. Maio 1975. Guy Le Querrec.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Bebendo um copo oferecido por um habitante depois da vacinação de animais. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Parada de Ester. Maio 1975. Guy Le Querrec.


(Fotos de Guy Le Querrec/Magnum Photos)

GUY LE QUERREC - Nascido em Paris em 1941 em uma família modesta da Bretanha, Guy Le Querrec fez as suas primeiras imagens com músicos de jazz de Londres na década de 1950, fazendo a sua estréia profissional em 1967. Dois anos mais tarde, ele foi contratado pela revista Afrique Jeune como editor de imagem e fotógrafo, e fez as suas primeiras histórias na África francófona, incluindo o Chade, Camarões e Níger. Em 1971, ele confiou os seus arquivos à Vu, recentemente fundada por Peter Fenoyl, e em 1972 co-fundou a cooperativa agência Viva, que deixou três anos depois. Guy Le Querrec juntou-se à Magnum em 1976. No final de 1970, ele co-dirigiu dois filmes, e em 1974 e 1975 esteve em Portugal e fotografou a "revolução", principalmente as campanhas de dinamização cultural, cujas fotos podem ser vistas no site da Magnum. Em 1979 publicou um livro: Portugal 1974-1975 : Regards sur une tentative de pouvoir populaire.


João Abel Manta, “Muito prazer em conhecer vocelências”. 1975?


Um testemunho das campanhas LER AQUI




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