terça-feira, 12 de março de 2013

Silvana Mangano - A Vénus dos arrozais



Silva Mangano em Arroz Amargo (Riso Amaro, 1949) de Giuseppe De Santis.
Foto de theredlist.fr


Coisas boas em jornais


A Vénus dos arrozais que a Censura proibiu
Texto de Vítor Pavão dos Santos 
Jornal Se7e
21-02-80



"Tudo hoje quer cinema italiano
P'ra ver de perto as pernas da Mangano
Dantes a Rita é que era o chamariz
Hoje a Silvana é que dá que falar
E então nas ruas andam velhos
Andam novos, andam ginjas
Anda tudo a perguntar
Mas onde é que está o gato?
Sei lá! Sei lá!
Mas onde e que está o gato?
Sei lá! Sei  lá!"

Era assim que a revista, comentadora infalível da vida portuguesa, pela voz da grande Hermínia Silva, assinalava, em 1953, em Lisboa antiga, a loucura que então provocava o cinema Italiano e as suas vedetas. Tudo começara, quando, em 1951, Silvana Mangano surgira desafiadora, no écran do Tivoli, camisola colada ao peito farto, calções molhados e pernas nuas, mergulhadas, até ao joelho, nos arrozais, em Arroz Amargo (Riso amaro, 48), desencadeando o desejo do «bom» Raf Vallone e do «cínico» Vittorio Gassmann, tão próxima, tão verdadeira, logo conquistando o espectador lisboeta, derrubando as imagens technicoloridas das pin ups sofisticadas, como Rita Hayworth ou Betty Grable. Mas não seria por muito tempo que o público poderia gozar da beleza de Silvana, já que a vigilante censura salazarista, também visivelmente perturbada, mandou retirar o filme de exibição, 14 dias após a estreia, alegando, entre outras idiotices, abundância de «mulheres em roupagens sumárias». E lá se foi a Silvana mondadeira (...). O escândalo do filme não era facto inédito, pois nos Estados Unidos também a legion of decency condenara Bitter Rice. Só que lá, o caso até serviu de publicidade ao filme, que rendeu a considerável soma de seis milhões de dólares. Mas por cá, tudo era bem diferente — tirava-se a fita de circulação e não se davam mais satisfações. 

Silvana Mangano e Dino De Laurentiis com as filhas em Monte Carlo. 1966. Carlo Bavagnoli.


Porém, o que a censura não podia impedir era que a imagem avassaladora da belíssima Silvana ganhasse o prestigio do fruto proibido. E o público, que esperava ansioso noticias dela, lá a conseguiu ver, em 1952, moldada pela combinação preta, indispensável acessório das vamps neo-realistas, em O Lobo da Calábria (Il lupo della Sila, 49), disputada mortalmente por Amadeo Nazzari e Jacques Sernas. E não ficou desiludido. Porém, o sucesso louco, que fez Lisboa andar com a cabeça à roda e esgotar semanas e semanas o Império, foi Anna (Anna, 51), onde La Mangano, com aquele seu ar indiferente e um tanto enjoado, ora era desvelada freira-enfermeira, ora, de quando em quando, recordava o seu passado de provocante cantora de cabaret fumarento, mais uma vez dividida entre o «bom» fazendeiro Raf Vallone e o «cínico» barman Vittorio Gassmann. Dolente, em estudadas poses coleantes, Silvana cantava, com a voz emprestada por uma qualquer cantora ignorada, uma melodia melancólica, T'ho voluto bene, e um remexido balão, o célebre Balão da Ana, cantigas que causaram um furor tremendo, e a telefonia tocava a toda a hora, sendo até gravadas pela Amália, a primeira com versos em português, do jovem poeta David Mourão-Ferreira. Nesse ano de 1953, Hermínia estava, portanto, absolutamente certa, a Silvana é que dava que falar, a tal ponto que, num inquérito da revista Plateia, 82 por cento dos seus leitores declararam ser ela a sua preferida.

Silvana Mangano e sua filha em Voivodina, Jugoslávia, durante as filmagens 
de Tempestade (La Tempesta, 1958) de Alberto Lattuada. 1958. Gjon Mili.


A serena «signora» de Laurentiis

Mas esta loucura não acontecia só por cá, mas um pouco por toda a parte. Filha de pai italiano e mãe inglesa, Silvana Mangano estudara dança, fora manequim e tentara o cinema, até que, em 1948, conhecera o produtor Dino de Laurentiis, com quem logo casara, o qual, cuidadosamente, preparara o seu lançamento. E o produto mostrara-se de tão boa qualidade que o dificílimo mercado americano se mostrava muito receptivo, a ponto do New York Times afirmar entusiasmado, ser miss Mangano uma mistura de Anna Magnani, com menos 15 anos, Ingrid Bergman, com temperamento latino, e Rita Hayworth, com 12 quilos a mais.
Perante esta aceitação internacional, Silvana apareceu, em 1954, em duas grandes produções italo-americanas. Um era Mambo, tentativa pouco conseguida de explorar o filão de  Anna, onde se entregava a danças ardentes, com o  ballet  negro de Katherine Dunham, casava com Michael Rennie, um conde hemofílico, e era mais uma vez tentada por Vittorio Gassmann, o seu «cínico» privativo. O outro, Ulisses (Ulisse), onde se desdobrava num duplo papel, a paciente e tecedeira Penélope e a feiticeira Circe, enredando, nos seus encantos, Kirk Douglas, o herói homérico desta supercolorida odisseia de cartão e purpurina.

Silvana Mangano, durante as filmagens de Tempestade (La Tempesta, 
1958) de Alberto Lattuada. Voilodina, Jugoslavia. 1958. Gjon Mili.


Entretanto, a extrema sensibilidade com que Silvana viveu uma amargurada prostituta, num dos sketchs de Oiro de Nápoles (L'ro di Napoli, 54), dirigida pelo seu grande amigo Vittorio de Sica, valeu-lhe ser distinguida com o  Nastro d'argento, para a melhor actriz italiana do ano, prémio que novamente conquistou, em 1964, pela criação da figura da condessa Edda Ciano, a célebre filha de Mussolini, em Il processo di Verona, um filme, nessa época, proibido em Portugal, e que ainda por cá não correu. Embora estas distinções tenham dissipado o preconceito generalizado de que as mulheres que se impõem pela beleza têm, por força, que ser más actrizes, a signora Di Laurentiis, olhando pelos filhos, no conforto da sua villa  romana, mostrava-se pouco interessada em se assumir superstar, limitando muito as suas aparições, ainda por cima geralmente breves, apesar da sua presença, sempre belíssima, ser, com frequência, a melhor coisa de algumas superproduções do seu marido, como A revolta dos cossacos (La tempesté,  58), d'aprés Pushkin, também se revelando uma excelente comediante, em  Crime (Crimen, 60), ao lado dos experimentados cómicos Alberto Sordi, Nino Manfredi e o sempre presente e excelente Vittorio Gassmann.

Silvana Mangano durante as filmagens de Cinco Mulheres Marcadas 
(Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


A presença de prestígio seguro

Em 1966, comemorando quase vinte anos de feliz casamento, De Laurentiis ofereceu á mulher um presente caríssimo, que consistiu num filme, em sketchs, todo centrado em Silvana, que interpretava cinco personagens muito diversas, dirigida por cinco dos mais importantes realizadores Italianos: Luchino Visconti, Mauro Bolognini, Pier Paolo Pasolini, Franco Rossi e Vittorio De Sica. Como geralmente acontece com encomendas deste tipo, A magia da mulher (Le streghe) foi uma tremenda decepção, em que apenas o episódio de Pasolini, La terra vista dalla luna, com Totó e Ninetto Davoli, se destacava, pela sua colorida invenção surrealizante.

No entanto, a partir de então, Silvana Mangano alcançaria um enorme prestigio, passando a ser indispensável ás obras de dois grandes realizadores, já desaparecidos, Pasolini e Visconti, que finalmente saberiam compreender e usar plenamente a sua beleza, o seu talento, e, mais do que tudo, a sua estranha presença. Dirigida por Pasoloni, ela seria uma Jocasta, primitiva e misteriosa, em Edipo Re (67), um filme multo belo, incompreensivelmente ainda inédito em Portugal; uma reprimida mãe de família, da alta burguesia, que, tocada pelo anjo desencadeador (Terence Stamp), desabrocha numa maravilhosa ninfomaníaca, em Teorema (68); e, numa breve aparição, a Virgem Maria, no esplendor da visão final de Giotto, em Decamerone (71)


Jeanne Moreau e Silvana Mangano brincando durante as filmagens de Cinco Mulheres 
Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


Dirigida por Visconti, vestida com suprema elegância por Piero Tosi, marcaria três figuras inesquecíveis de mulher distante e requintada: a mãe, anos 10, do jovem Tadzio, em Morte em Veneza (Morte a Venezia, 70); Cosima Lizt, a enigmática companheira de Richard Wagner, em  Luís da Baviera (Ludwig II, 72); a snob riquíssima e inquieta mantedora do gigolo Helmut Berger, em Violência e paixão (Gruppo  dl  famiglia in un interno, 74), a sua última aparição no cinema, até  à data. Semi-retirada desde há seis anos, apesar de apenas em Abril próximo completar 50 anos, semi-separada de Dino De Laurentiis, actualmente um dos mais poderosos produtores do cinema americano, a trajectória de Silvana Mangano, de mondadeira, explosiva força da natureza dos arrozais neo-realistas, a delicadíssima e serena aristocrata, movendo-se entre rendas e suspiros, é uma das mais fascinantes de quantas o cinema tem para nos oferecer.

Vítor Pavão  dos Santos
Texto e Titulos
Jornal Se7e
21-02-80

Vera Miles, Barbara Bel Geddes, Carla Gravina, Silvana Mangano e Jeanne Moreau em Cinco 
Mulheres Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


Silvana Mangano (1930-1989). Jugoslávia. 1958. Gjon Mili.


(Fotos LIFE Archive, excepto a primeira)


1 comentário:

  1. Foi tôda uma artista.arrôs amargo eu ainda tive tempo de o vêr antes do abrutido salazar e o seu canalha d'amigo cerejeira o terem proibido

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